A EIRELI e a desconsideração da personalidade jurídica no direito do trabalho

          Com a vigência da Lei 12.441/11, o artigo 44 do Código Civil passa a ter, ao lado das associações, sociedades e fundações, uma nova espécie de pessoa jurídica de direito privado: as “empresas individuais de responsabilidade limitada” ou EIRELI (art. 44, IV, CC).

         Ainda, no Livro II do Código Civil (“Direito da Empresa”) foi criada a possibilidade das EIRELI´s - ao lado dos empresários (arts. 966-980, CC), das sociedades não personificadas (comuns e em conta de participação; arts. 986 a 996, CC) e das sociedades personificadas (simples e empresárias; art. 997-1092, CC) - exercerem as atividades empresariais definidas no artigo 966, CC.

         É que com a Lei 12.441/11, a atividade empresária (empresa) foi alçada à condição de pessoa jurídica (artigo 44, IV, CC) e com autorização para realização de atos empresariais (artigo 980-A, CC).

         Adotando-se o rigor doutrinário do direito comercial, pode-se afirmar que houve uma inovação legislativa ao se conferir à “empresa” o status de pessoa jurídica, com respectiva autonomia processual, patrimonial, contratual e de responsabilidade, distinta de quem a constituir.

         Contudo, ao lado do conceito clássico da “empresa” como sendo uma “atividade econômica realizada de forma organizada”, verifica-se que o termo acolhe outras acepções que enfatizam o caráter econômico  (combinação de fatores de produção), além do próprio reconhecimento poliédrico do termo em seara jurídica, o que na doutrina de Alberto Asquini (RDM n. 104/1996), assume ao menos quatro perfis: (a) perfil subjetivo – a empresa é o empresário; (b) perfil funcional – a empresa é uma atividade de produção e circulação de bens e serviços; (c) perfil patrimonial – a empresa é um conjunto de bens utilizados na atividade econômica ou sinônimo de estabelecimento; (d) perfil corporativo – a empresa é uma instituição ou organização formada pelo empresário e colaboradores, todos voltados para uma finalidade comum (ressaltando-se que este último perfil não tem amparo no ordenamento jurídico brasileiro, à vista dos artigos 2º e 3º da CLT).

         Esses diferentes “perfis de empresa” estão presentes em vários diplomas legais sem nenhuma homogeneidade, a exemplo do artigo 931, CC, que toma a palavra “empresa” como “sociedade empresária”; do artigo 966, CC, que adota o perfil funcional de “empresa”; do artigo 2º da Lei 8884/94 para o qual o significado de “empresa” é o de “pessoa jurídica”; e do §11 do art. 32 da Lei nº 8.212/91 em que “empresa” tem o significado de “estabelecimento”.

         Até mesmo no artigo 2º da CLT, o termo “empresa” é usado em referência à definição do empregador, o que para Maurício Godinho Delgado, embora se reconheça a imprecisão, tem-se no “mal uso do termo” a serventia de se reforçar a característica da despersonalização do empregador para fins de sucessão e responsabilidade trabalhista.

         Por fim, nos artigos 10 e 448, o termo “empresa” denota perfil patrimonial, pois se vê a opção legislativa de se manter agregadas à “estrutura jurídica da empresa” as relações trabalhistas existentes em momentos de alienação do estabelecimento, que serão sucedidas pelo novo empresário.   

         De qualquer modo, o novo inciso IV do artigo 44, do CC fortalece o perfil subjetivo da empresa, até então repudiado pela doutrina, pois fica institucionalizada a possibilidade da “atividade” ser erigida a pessoa jurídica, colocando-se a EIRELI numa situação aproximada (ou equivalentes) das “sociedades unipessoais” e das “sociedades sem sócios”, figuras atípicas em nosso ordenamento, mas presentes na doutrina comercial e no direito positivo comparado.

         Digo isso porque, embora a EIRELI (inciso IV, art. 44, CC) se distinga das sociedades (inciso I, art. 44, CC), o regime de responsabilidade limitada (§ 6º do artigo 980-A, CC) aproxima ambas as figuras. Nesse sentido o veto ao §4º do artigo 980-A reforça essa aproximação.

         O § 4º do artigo 980-A, vetado, tinha a seguinte redação: Somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, não se confundindo em qualquer situação com o patrimônio da pessoa natural que a constitui, conforme descrito em sua declaração anual de bens entregue ao órgão competente”.

         A Mensagem Presidencial n. 259 que vetou parcialmente o artigo 980-A apresentou as seguintes razões: “Não obstante o mérito da proposta, o dispositivo traz a expressão 'em qualquer situação', que pode gerar divergências quanto à aplicação das hipóteses gerais de desconsideração da personalidade jurídica, previstas no art. 50 do Código Civil. Assim, e por força do § 6º do projeto de lei, aplicar-se-á à EIRELI as regras da sociedade limitada, inclusive quanto à separação do patrimônio”.

         Vê-se, portanto, que embora a EIRELI não seja uma nova figura societária, o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, prevista no artigo 50 do Código Civil, lhe é aplicável.

         Vale até mesmo a observação de que o instituto da EIRELI ficaria melhor disposto no título II (Da Sociedade) do que no título I (Do Empresário) do Livro II do Código Civil, já que as regras e princípios que lhe estão sendo aplicados são as das pessoas jurídicas e  não as do empresário. 

         Com efeito, vejam-se as impropriedades da Lei 12.441, quando utiliza os termos: “sócio” (§ único do art. 1033, CC), “capital social” (art. 980-A, caput, CC); “firma ou denominação social” (§1º do art. 980-A, CC)  e “outra modalidade societária (§3º, art. 980-A, CC). É que, como dito, a EIRELI não é um novo tipo societário, mas uma nova espécie de pessoa jurídica, mediante personificação da atividade empresarial (ou o perfil funcional da “empresa”).    

         Insta observar que o instituto do “disregard of legal entity”, oriundo do common Law system, nasceu historicamente sob o pressuposto da existência da sociedade personificada para, diante da fraude ou do desvio de finalidade social, proteger credores através da extensão da responsabilidade sobre a esfera patrimonial dos sócios que a constituíram.

         Tomando-se a desconsideração da personalidade jurídica de uma “atividade” não haveria sócios a quem responsabilizar. Nesse caso, ressalvadas as atecnias da Lei 12.441, e considerada a interpretação sistemática da aproximação dessa nova pessoa jurídica com as regras aplicáveis à sociedade limitada (embora EIRELI e sociedades sejam figuras distintas), convém admitir a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica para atingimento do patrimônio, não do sócio, mas do titular instituidor da EIRELI.

         Por fim, no âmbito do direito do trabalho essa admissibilidade ganha ainda maior peso se considerado o princípio da despersonalização do empregador e da primazia da realidade sobre a forma, os quais possibilitam a desconsideração do manto da pessoa jurídica (sob qualquer forma) e a consequente responsabilização subsidiária de todos os integrantes da sociedade empresária (sócios ou titulares, gestores ou não) nos casos de mera insuficiência de bens para garantia da execução judicial.

Comentários

Postagens mais visitadas