Tutela Penal do Sentimento Religioso no Direito Pós-Moderno

      Propus-me a tecer breves notas sobre os crimes contra o “sentimento religioso”,  previstos no artigo 208 do Código Penal o que, não obstante constituir tutela erigida num diploma jurídico de 1940, ainda persiste como um bem jurídico relevante, ao lado de outros como a vida, a honra, o domicílio, o patrimônio, a família e os costumes.


O referido artigo descreve a seguinte conduta sancionadora: “Art. 208 - Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso. Pena – detenção, de 1 mês a 1 ano, ou multa”.

Depreende-se, portanto, que o Estado coloca o seu mais grave aparato jurídico protetivo à disposição da tutela do direito que o homem goza de ter sua crença e professar uma religião.

Conforme o ensinamento de Magalhães Noronha “[...] em um Estado onde reine a liberdade, compreende-se que sejam admitidos os debates, as críticas, as polêmicas de natureza religiosa, mas o crente tem o direito inconcusso de se ver respeitado em sua fé.” (in Direito Penal, v. 3, p. 73).

Em primeiro lugar, a idéia de escarnecer acompanha o sentido de ridicularizar, mofar, achincalhar. Ainda, para que se caracterize o delito, o escárnio deve se dirigir a pessoa determinada (e não a grupo de confessos de uma determinada religião). Há também de ser público e realizado por motivo específico de crença ou função religiosa. A propósito, protege-se o direito à fé religiosa e o exercício do cargo religioso, entendido este como “[...] o ministério exercido ou estado assumido por quem participa de celebração de um culto ou de uma organização religiosa” (cf. Hungria, Comentários, v. 8, p. 64).

Em segundo lugar, o dispositivo penal tutela a realização do culto público religioso contra qualquer pessoa que impede ou perturba seu desenvolvimento. A proteção é específica à cerimônia, entendida como ato de culto revestido de solenidade, e extensiva a toda a forma de prática religiosa, como o das reuniões sem o aparato de ministro, reuniões de estudos bíblicos ou orações, dentre outras.

Nesta figura, a doutrina penal considera que impede a cerimônia ou prática de culto religioso quem não permite que ela se inicie ou tenha prosseguimento; diz também que perturba a cerimônia ou culto religioso quem a tumultua, desorganiza ou altera o seu desenvolvimento regular.

Em terceiro lugar, o artigo 208 sanciona a ação física de vilipendiar, que é o ato de tratar como vil, com desprezo, com desdém ou de modo ultrajante o ato ou objeto do culto, o que pode se efetivar por meio de palavras, gestos ou escritos.

O incurso a qualquer uma das três figuras tipificadas pelo artigo 208 do Código Penal gera o direito de instauração de inquérito policial para apuração dos fatos, visando ajuizamento de ação penal e imposição de pena de detenção de 1 mês a 1 ano, ou multa, a quem for condenado pela prática de tais crimes.

O sentimento religioso, ao lado da tutela penal, também recebeu proteção constitucional. No Brasil, sob a forma republicana, estando já rompidas as relações entre o Estado e a igreja oficial, e antes mesmo da Constituição promulgada pelo Decreto n. 119-A de 07-01-1890, a liberdade de culto já se encontrava assegurada.

E mesmo que transcorridos mais de um século de vigência da tutela brasileira do “sentimento religioso”, a doutrina e jurisprudência são unânimes em reconhecer a recepção do artigo 208 do Código Penal pela nova ordem erigida sob a Constituição Federal de 1988.

Assim, no âmbito dos chamados “Direitos e Garantias Fundamentais”, assegurados pela atual Constituição Federal a todas as pessoas, sem distinção de qualquer natureza: (a) “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” (art. 5º, IV, CF); (b) “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” (art. 5º, VI, CF); e (c) “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei” (art. 5º, VIII, CF).

Remanescem, contudo, sérios desafios contemporâneos à questão.

É que, sendo o “sentimento religioso” inscrito sob uma égide constitucional que consagra a liberdade de consciência e de crença (com o correspondente direito de manifestação do pensamento), e sendo o Estado Brasileiro estabelecido sob o princípio da laicidade (art. 19, I, CF/88), não obstante a promulgação da Constituição vigente sob a “proteção de Deus”, registrada no preâmbulo da carta de 1988, como é que se operacionaliza o exercício desse direito, consideradas as características da sociedade brasileira, notadamente marcada pela diversidade cultural, étnica e com instituições fortemente influenciadas por paradigmas jusfilosóficos pós-modernos, onde o único consenso parece ser o pluralismo e o relativismo reinantes?

Como manifestação do conflito, verifica-se que, sob o epíteto constitucional da “liberdade de consciência e de expressão”, setores da sociedade brasileira têm vivenciado um campo de batalha qualificada pelo que ouso nominar de “síndrome do cobertor curto”. É que, dadas duas posições antinômicas, a liberdade de expressão tutelada a uma delas tem sido tomada como violação à liberdade de expressão da que lhe é contrária.

A questão ganha maior relevo quando se observa uma tendência na hermenêutica jurídica constitucional de se entender que possíveis manifestações que reivindiquem um certo sentido de univocidade, por se chocarem com opiniões remanescentes, sejam atentatórias ao senso comum da liberdade de expressão.

Conforme dito, a pós-modernidade também atingiu o Direito. A teoria geral do novo direito constitucional tem desenvolvido os chamados “métodos de interpretação evolutiva” que permitem a modificação informal da Constituição sem a necessidade de alteração do conteúdo formal do seu texto.

São propostos métodos como o “científico-espiritual”, de Rudolf Smend, que defende uma concepção elástica, integrativa e unitária da Constituição, bem como uma orientação mais política do que jurídica a nortear a atribuição do sentido aos seus dispositivos, dentro da realidade social vigente de seus destinatários. Há o método “tópico-problemático”, proposto por Thedor Viehweg, que concebe a hermenêutica com uma ênfase extremamente subjetiva, dando-se sentido à norma com base apenas na argumentação dos seus intérpretes. Há o método “concretizador”, defendido pelo Ministro Gilmar Mendes, do STF, que busca a supressão das lacunas normativas por meio de um positivismo empírico baseado em princípios e normas da própria Constituição. Há, ainda, o método “estruturante”, de Konrad Hesse, que pressupõe que a normatividade não se limita ao texto da lei, mas em precedentes jurisprudenciais, do direito comparado, ou de qualquer outra fonte que não corresponda ao texto legal.

Assim, sob a nova hermenêutica, a associação da liberdade de crença e de expressão com a tutela do sentimento religioso ganha contornos que acabam por tornarem-se restritivos, coibidores ou condescendentes com manifestações alheias.

Por um lado, e mais remotamente, o “sentimento religioso” tem sido protegido das manifestações que lhe são contrárias. É o que se constata nos Comentários de Pontes de Miranda à Constituição brasileira de 1946, quando dizia que, no Brasil, premido por fortes valores cristãos (mesmo que não os de tradição protestante), ainda não se havia compreendido que o conteúdo das liberdades de consciência e de expressão envolveria também a tutela de manifestações anti-democráticas e anti-religiosas.

Ocorre também que, sob ótica inversa, em nome do “sentimento religioso”, tem sido frequente a denúncia à intolerância religiosa, na forma de atentados ao direito de liberdade de expressão artística (também protegida pela nossa Constituição no artigo 5º, em seu inciso IX), como no caso, ocorrido em 2006, envolvendo a publicação de charges sobre Maomé, em um jornal dinamarquês, e que provocou reações violentas, causando mais de 100 mortes.

De outra parte, mais recentemente, o “sentimento religioso” tem sido orquestradamente tolhido pela repercussão do conhecido PLC n° 122/2006, ante a tentativa de institucionalização do assim chamado “delito de opinião”, que ocorre, por exemplo, quando alguém manifesta, por seguir um credo religioso, sua decorrente censura ao comportamento homossexual. Convertendo-se tal projeto em lei, estar-se-ia vertendo a livre manifestação de opinião em uma prática de ação violenta, constrangedora ou intimidatória ao direito de opção sexual, com implicações oblíquas ao direito fundamental de consciência, crença e expressão.

Como se vê, foi-se o tempo em que se afirmava conforme Lord Chief Justice Hale, no caso Rex vs. Taylor, de 1676, que “[...] o cristianismo faz parte do direito inglês (...). Por essa razão, ofender o cristianismo significa praticar subversão contra o direito”.

Diante deste cenário, ainda está por vir o necessário assentamento do equilíbrio e do estabelecimento das fronteiras entre o “discurso do ódio” e o da “tolerância”, entre o atentado e a efetiva proteção da “dignidade da pessoa humana” combinada com o livre exercício do “direito de discordar”, visto que em todas essas formas de manifestações repousa o fundamento do direito de consciência e expressão, sob o alvitre ou ataque do “sentimento religioso”.

Para as igrejas, notadamente as cristãs, considerados o laicato aparente e a pseudo neutralidade instaurada no relativismo dos nossos tribunais e casas legislativas, vê-se que a proteção ao “sentimento religioso”, então tutelada pelo Código Penal de 1940, tem passado por uma revisitação imponderável que pode vir a subverter a idéia da liberdade de crença e de expressão.

Não é de se estranhar que o crente fiel a sua crença, venha a ser colocado numa posição que, ao invés de pessoa a ser tutelada no exercício do seu direito de consciência, se torne algoz da sociedade, a qual se veria confrontada por ter que conviver com manifestação unívoca de quem assume seu credo em meio à ditadura do relativismo.

No campo da hermenêutica jurídica, tentativas têm sido feitas no sentido de minimizar o caos e estabelecer filtros que permitam apenas a passagem de enunciados normativos que nem inibam, nem promovam o sentimento religioso, quer direta, quer adversamente.

Por fim, alguns tribunais estrangeiros já têm desenvolvido e adotado a recente doutrina do impacto desproporcional ou adverso, usada para “[...] impugnar medidas públicas ou privadas, aparentemente neutras, mas cuja aplicação concreta resulte, de forma intencional ou não, em manifesto prejuízo a minorias estigmatizadas” (cf. Sarmento, in Leituras, p. 125).

Por esse expediente, as Cortes excepcionam leis e criam barreiras ao prejuízo oblíquo ensejado para as minorias. Aplicado com êxito em questões étnicas raciais, sem ainda ter alcançado grande permeabilidade no direito brasileiro, vejo haver, no seio da movediça hermenêutica acima sinalizada, a possibilidade de se construir um expediente ao alcance dos cristãos dispostos a manterem suas convicções firmadas nas Sagradas Escrituras, caso sobrevenham tempos ainda mais inóspitos à liberdade religiosa.


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