As duas faces do superendividamento


O reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor é um dos princípios mais importantes da Política Nacional das Relações de Consumo, estabelecida pelo inciso I do artigo 4º, da Lei 8078/90.

Por essa razão, diversas normas foram criadas para a proteção do consumidor envolvendo questões ligadas à sua segurança, à reparação civil, à revisão contratual e à informação adequada, incluindo-se a vedação da publicidade enganosa e abusiva.

Contudo, observamos que o sistema de proteção de consumidor não tem conseguido evitar a sua exposição a um dos problemas que mais tem acometido as famílias brasileiras, quanto aos hábitos do consumo: o problema do superendividamento, definido como impossibilidade do consumidor pagar suas dívidas, inclusivas as mais básicas, devido ao comprometimento de sua renda pessoal e familiar.  

Por conta disso, já existe em andamento uma proposta para ampliação do rol dos direitos básicos do consumidor, visando assegurar “a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira, de prevenção e tratamento das situações de superendividamento, preservando o mínimo existencial, por meio da revisão e repactuação da dívida, entre outras medidas”.

O Anteprojeto estabelece ainda os seguintes mecanismos:

  1. Vedação à concessão de crédito sem a prévia realização de consulta aos serviços de proteção ao crédito;
  2. Dever de o fornecedor de crédito avaliar de forma responsável as condições d consumidor de pagar o crédito contratado, mediante consultas aos bancos de dados de proteção ao crédito;
  3. Obrigação de o fornecedor e o intermediário do crédito comprovarem a realização da análise das condições de pagamento do consumidor;
  4. Possibilidade de o fornecedor de crédito aferir o nível de endividamento do consumidor por meio de consulta a cadastros de consumo e bancos de dados de proteção ao crédito.
  5. Está previsto ainda um novo processo de repactuação de dividas para consumidores superendividados de boa-fé, entendidos como sendo aqueles derivados de má administração financeira ou de fatos alheios à vontade do consumidor, como o desemprego, por exemplo. O mecanismo de revisão de dívida não contemplará, portanto, os maus pagadores, ou devedores de má-fé.

Entendemos que a propostas para conter o superendividamento resolverão parte do problema, o que já representa um grande avanço.É que essa questão tem duas faces.

A primeira envolve os agentes concedentes do crédito e a concessão de limites superiores à capacidade de pagamento do tomador. Neste ponto, o anteprojeto visa regular as transações consumeiristas e estabelecer mecanismos que impeçam a concessão do crédito sem o respaldo de informações que indiquem a capacidade de pagamento do consumidor.
            
A segunda face do superendividamento, embora indicada no texto do anteprojeto, não é de fácil operacionalização. É que o problema passa também pelo comportamento do consumidor, pelos seus hábitos de consumo, o que está diretamente relacionado com a (falta) educação financeira. Isso não se resolve com o texto da lei, mas com a mudança cultural da população brasileira, que sabidamente, tem grande propensão a gastar e não a poupar, é orientada para o curto prazo e para ganhos imediatos (Ashkanasy, 2004). 
            
Por essa razão, embora a lei não aborde, é possível distinguir entre o consumista e o consumidor.  O consumista é um gastador contumaz e compulsivo. O consumismo é um ato quase puramente psicológico, que se distancia das motivações práticas. No centro da compra está um impulso, uma carência ou um hábito.

O consumista deixa-se envolver facilmente por apelos publicitários e se guia pelos padrões de comportamento (e consumo) que a mídia cria e destrói facilmente. O consumista é presa fácil do mercado de consumo e se não lhe forem impostos limites legais, como os propostos no anteprojeto acima, ele facilmente incorre nas situações do superendividamento.

O consumidor é um agente consciente e que se comporta com razoável racionalidade e motiva seus gastos pela conjugação do binômio necessidade-possibilidade, sem jamais deixar de considerar o orçamento e a contabilidade pessoal. Há o uso equilibrado do dinheiro e do crédito. Não há desperdícios e uma visão ética e responsável sobre o uso dos bens de consumo.

Concordamos que se aprimorem as regras de proteção ao consumista. É necessário coibir as práticas abusivas quanto à publicidade, ao contrato e oferta de créditos extorsivos e acima da capacidade de pagamentos.

Mas acreditamos, acima de tudo, que a mudança cultural resultante da educação financeira seja a chave para a melhoria das relações de consumo, com reflexos na diminuição do problema do superendividamento. 

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