Acúmulo de Funções e o Direito ao Aumento Salarial

É possível a fixação de novo salário ao empregado quando o empregador lhe atribuir quantidade ou qualidade de trabalho superior ao inicialmente contratado, quebrando a base objetiva do contrato de trabalho?

A CLT, ao discorrer sobre o contrato individual do trabalho como sendo "o acordo tácito ou expresso, correspondente à relação de emprego" (art. 442, CLT), firmou orientação eclética de contemplar tanto a autonomia da vontade (teorias contratualistas) como o mero fato ou engajamento do trabalho na estrutura produtiva, daí decorrendo o reconhecimento da relação de emprego como "correspondente" ao próprio acordo de vontade (teorias acontratualistas).

Por consequência, extrai-se do contrato de trabalho, e da relação de trabalho que lhe é correspondente, uma de suas principais características, a saber, a comutatividade, pois à prestação do empregado corresponde a contraprestação do empregador, previamente estabelecida.

O empregado, via de regra, é contratado para desenvolver determinadas funções, o que requer o dispêndio de respectivos conhecimentos, esforços, responsabilidades, com correspondente resultados para a dinâmica empresarial do empregador. Tais parâmetros, por sua vez, possibilitam às partes a negociação ou fixação de determinado nível de remuneração ao empregado pelo trabalho prestado.

A problemática surge quando após a contratação, o empregado se vê surpreendido com a obrigação de desenvolver outras funções, dispendendo força de trabalho maior do que fora acordada, porém sem receber nenhuma contraprestação salarial adicional.

Dos princípios que informam a uma teoria geral contratual vigente sob o Código Civil de 1916, tínhamos a (a) autonomia da vontade, que permitia a livre pactuação entre partes, desde que lícita, (b) o princípio "pacta sunt servanda", que exigia que as partes cumprissem exatamente o que se havia combinado; (c) a relatividade, que dispunhas que o contrato fazia lei apenas entre as partes, sem vincular terceiros.

Já sob o Código Civil de 2002, uma nova principiologia se impôs, com base nos preceitos constitucionais de efetividade dos direitos fundamentais. Agora, os contratos são interpretados sob a ótica da (a) boa-fé objetiva, (b) da função social do contrato e do (c) equilíbrio contratual, os quais não excluem os preceitos clássicos acima noticiados, mas mitigam sua força normativa, impondo nova leitura do direito contratual, com reflexos inclusive no direito do trabalho.

Assim, o problema do acúmulo de funções se apresenta relevante, e passível de intervenção judicial (art. 460, CLT), quando a boa-fé objetiva, a função social e o equilíbrio contratual deixam deixam de permear a relação contratual trabalhista.

Portanto, poder-se-ia afirmar que, em tempos de downsizing, pelo qual as empresas enxugam o quadro de empregados e aumentam as funções dos demais, se a demanda é a mesma, a redução do quadro de pessoal implicaria o aumento das atribuições dos empregados, fazendo jus ao mesmo efeito em sua remuneração.

Sob outro angulo, poderia também ser dito que o empregado passaria a ter o direito de recusar tarefas, que embora estejam ao seu alcance, não eram praticadas desde o início do contrato; ou caso se submeta às ordens do empregador, poderia reivindicar aumento salarial proporcional ao aumento das responsabilidades.

Ocorre que a questão não é tão simples assim, devendo o pretenso direito ao adicional por acúmulo ou desvio de função, ser interpretado, também, à luz do parágrafo único do artigo 456, CLT, que diz: "À falta de prova ou inexistindo cláusula expressa a tal respeito, entender-se-á que o empregado se obrigou a todo e qualquer serviço compatível com a sua condição pessoal".

O desafio aqui é o de conciliar os novos princípios do direito contratual (os quais afetam a relação de trabalho) com o conceito cristalino de "flexibilidade da funcionalidade do trabalhador", adotado pela CLT no artigo 456, parágrafo único.

De imediato, este dispositivo nos informa que o trabalhador não é contratado para uma rotina rigorosa de procedimentos da qual jamais se possa desvencilhar. No entanto, a essa liberdade de contratar sem obrigatoriedade de cláusula expressa que delimite as funções que são atribuídas ao trabalhador, há limites dos quais o empregador não pode se desvencilhar:

a) A capacidade física e intelectual do trabalhador deve ser respeitada. Não se pode ampliar as funções da empregada  até exigir que carregue fardos superiores a 20 kg, pois haveria violação de regra proibitiva expressa nesse sentido. Nem tampouco se pode atribuir posição de chefia a profissional que não reúne a desenvoltura para tal função, pois as incumbências fogem a sua capacidade pessoal. Fica aqui uma impressão de que há intenção de se exigir além das possibilidades do empregado como meio de provocar-lhe a dispensa;

b) A jornada de 8 horas deve ser respeitada. Em processos produtivos em que uma unidade é produzida a cada hora, fica claro que a exigência de 10 unidades na mesma jornada, de 8 horas, geram a percepção clara de que o trabalhador estaria operando em acúmulo de função;

c) Mesmo no caso de haver o pagamento de horas extras pela sobrejornada, o fato de sua habitualidade é suficiente para caracterizar que o extraordinário se tornou ordinário, o empregado procura complementar sua renda ao sacrifício da  trabalhar mais, e o empregador se vale do expediente para evitar contratação de mão de obra complementar, o que lhe sairia mais caro. Há aqui, não um desvio propriamente, mas acúmulo de funções tal como no caso anterior.

d) Por fim, o desvio ou acúmulo se caracterizam quando o empregador descumpre o rol de atribuições contratadas pelo empregado de forma escrita ou verbal, havendo nesse caso, prova segura de sua extensão.

Tem-se pois que a norma trabalhista preconiza a versatilidade em grau mínimo ou médio para os empregados (art. 456, par. único, CLT), e esbarra nas limitações físicas, intelectuais, horárias e contratuais, acima mencionadas.

Todavia, essa versatilidade também deve ser mitigada quando a alteração ou aumento das atribuições de funções do empregado resvalarem na (a) boa-fé objetiva, no (b) equilíbrio contratual e na (c) função social do contrato, do que decorre o direito à contraprestação salarial superior à devida.

Muito ainda há que se desenvolver neste tema, para que os novos ditames do direito contratual, aliados ao fundamento do "valor social do trabalho" (art. 1o., IV, CF/88) sejam efetivados em nossa prática empresarial.

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